Bem após 3 anos de pandemia, chegou a hora de botar o pé na estrada de novo. Meu amigo Guilherme, de Curitiba, me procurou dizendo que estava com o tempo para uma nova viagem, curta, de apenas uns 10 dias. Tínhamos algumas opções de destino dentre elas a Eritreia se mostrou a mais viável, até por conta de podermos tirar o visto mais facilmente. Então tratamos de operacionalizar essa viagem.
Tudo começou com ele contatando uma agência de viagens local. O visto on-line só pode ser obtido contratando a empresa a agência de viagens local, então decidimos fazer uma viagem de 7 dias na Eritreia. Normalmente os pacotes para Eritreia são de 4 dias porque eles normalmente bastam. Um dia e meio na capital Asmara, depois uma visita à uma cidade chama Keren, onde tem um mercado de animais e fica no interior, no caminho para o Sudão e a outra se chama Massawa, que é uma cidade que fica no litoral do Mar Vermelho, uma cidade muito interessante, que já foi um porto super estratégico.
Agendamos uma viagem de 7 dias porque tínhamos a esperança de poder usar os últimos 2 ou 3 dias para visitar alguns monastérios no interior do país e também porque não fazia sentido sair de casa para passar apenas 4 dias na Eritreia. Como o país é pouquíssimo conhecido por aqui, eu resolvi não contar pra ninguém fora da minha família que eu estava indo pra lá (exceto o Leo e o Khouri, claro).
A passagem comprada foi pela Ethiopian Airways que há pouco se tornou a principal linha aérea da África. O aeroporto de Adis Abeba cresceu muito, e hoje é um grande hub da Ethiopian. Quando eu fui à Etiopia em 2011, o aeroporto me chamou a atenção, pois era pouco movimentado e sujo. Agora era bem grande, muito cheio, nada comparado à 20011. Nosso voo chegou lá às 7:30 da noite junto com dezenas de outros voos e íamos voar somente no dia seguinte às 9 da manhã. Então tivemos que passar a noite em Adis Abeba, só que assim como nós, praticamente todos os outros passageiros dessas dezenas de voos também precisam passar a noite lá. Saindo do aeroporto, no estacionamento, havia pelo menos umas 40 ou 50 vans, cada uma de um hotel diferente, para levar os passageiros em trânsito para hotéis pagos pela Ethiopian.
Como eu estive lá em 2011, deu pra sentir a diferença da capital.Em 2011, nós usamos o Hotel Sheraton para sacar dinheiro no caixa ATM e era praticamente o único hotel decente em Adis Abeba. Tivemos uma dificuldade grande em achar hotel bom, e onde ficamos nem era lá essas coisas. Desta vez tinha pelo menos uns 40 hotéis novos na cidade, as avenidas largas, todas novas, urbanizadas, enfim uma cidade completamente diferente da que eu visitei em 2011, uma transformação impressionante. Deve estar havendo uma enorme injeção de dinheiro de fora, pois a economia do país não justifica este salto tão grande.
Para entender a Eritreia é preciso conhecer o contexto do país. Não é tão simples assim um país que foi colonizado pelos turcos otomanos por cerca de 300 anos, e que foi depois ocupado pelos italianos que queriam algumas colônias naquela região da África. Os italianos tiveram a Somália, a Eritreia e a Líbia como colônias, e ao fim da segunda guerra os italianos, derrotados, deram o espaço para a entrada dos britânicos. Esses não ficaram muito tempo e logo houve uma resolução da ONU anexando a Eritreia à Etiópia, então simplesmente a Eritreia deixou de existir como país. Houve obviamente uma resistência e uma guerra pela Independência que foi decretada na década de 70. Quando parecia que ia se resolver, a Etiopia teve ajuda da União Soviética, o que prolongou o conflito até 1993, quando finalmente o ditador Mengistu fugiu do país, dando espaço para a tão desejada independência da Eritreia.
A paz durou pouco. Em 1998 começou uma guerra com a Etiopia, que durou 20 anos, e só acabou com a troca de governo da Etiopia. Este novo governo assinou um acordo de paz com a Eritreia. Porém, a população da região de Tigray, no norte da Etiopia, que governou o país por 30 anos, e em 2018 foi alijada do poder, começou um movimento de independência, que foi sufocado militarmente pela Etiopia, e com ajuda da Eritreia. Chegamos na Eritreia uma semana após o início de um cessar fogo, após 2 anos de conflitos. Ninguém sabe quanto tempo este cessar fogo vai durar.
Então pode-se compreender porque este povo é tão sofrido, após décadas e séculos de guerras, sem nenhum período minimamente longo de paz, e com isso consegue-se entender o porquê das fronteiras da Eritreia estarem fechadas até hoje. O país é totalmente avesso a interferências externas, considerando que durante todos esses conflitos, nunca houve uma ajuda consistente de nenhuma outra nação à Eritreia.
Isso tudo explica a ausência quase total de turistas estrangeiros no país. Durante uma semana que ficamos lá, conseguimos contar nos dedos quantos turistas encontramos. nossa viagem então ficou dividida em 3 partes: primeira Asmara, a capital; segunda Keren; e a terceira Massawa, no litoral.
Já tínhamos lido um pouco sobre Asmara, então não foi uma surpresa total, mas confesso que não esperava uma cidade tão limpa, tão organizada, tão calma, com um ritmo de vida como se fosse feriado praticamente todos os dias. Não existe um sinal de trânsito na cidade, o tráfego realmente é muito limitado, nota-se que não existe muito dinheiro circulando pelo país. A cidade tem sua arquitetura italiana, no estilo arte decô e ela tem a felicidade de, apesar de todas essas guerras, não ter sido atingida por bombas em nenhum momento, isto é, todos os prédios foram preservados de bombas e tiros etc. No entanto, pela falta de investimento, os prédios não foram restaurados, e estão realmente num estado de abandono muito triste, mas que não impede de serem admirados. Não cansamos de passar em frente às construções mais icônicas e as admirado. Como dito antes, o povo tem um ritmo de vida muito mais lento e como não circula grandes quantias de dinheiro no país, a grande maioria trabalha como funcionário público ou no comércio, então muitos deles ficam indo de cafés em cafés tomando seus macchiatos e conversando sobre a vida alheia. A internet no país é totalmente limitada, durante uma semana que ficamos lá não conseguimos nem telefonar, nem acessar a internet. Eu só consegui uma vez mandar algumas mensagens de WhatsApp. Inclusive a Eritreia é um dos países com menor liberdade de imprensa do mundo.
Como falado antes, nós contratamos uma agência de viagens e um guia, o Mehertab, que foi nos pegar no aeroporto nos levou até o nosso hotel, que era bom, considerando o número de turistas que o país recebe. Rapidamente fizemos um City tour pela capital. Era um sábado o dia que chegamos, e o ritmo de vida já era mais lento do que o habitual em dias de semana. A cidade é muito interessante as atrações são os prédios antigos, muito bonitos apesar de mal-conservados, as pessoas, e os cafés. Uma coisa que nos chamou a atenção foi a proximidade da catedral, da sinagoga, da mesquita e da igreja ortodoxa, enfim nota-se que não há problema de conflito religioso no país. O Cine Roma foi o primeiro a ser visitado, dá pra ver pelas fotos o quanto de glamour ele já teve, mas agora não funciona mais. Uma pena!
A Harnet Ave. é simplesmente a principal avenida do país todo. Vejam a tranquilidade, e claro, a beleza. Suas palmeiras dão um toque pitoresco, e o principal comércio da capital está concentrado ali. Repito: não há sinais de trânsito em Asmara, simplesmente porque não há necessidade.
A Catedral Nossa Senhora do Rosario, de Asmara. Muito linda. Neste dia estava fechada, mas depois conseguimos entrar.
O bairro do lado oriental da Harnet Ave. é bem chique, as casas são grandes, quase todas com árvores lindas, e quase não se vê tráfego. Então, era uma delícia caminhar por ali.
Existe um Centro de Reciclagem, onde eles reciclam literalmente tudo. É impressionante a habilidade e criatividade de como eles conseguem aproveitar qualquer rejeito, principalmente de metal, em objetos úteis, e vendáveis, já que o objetivo é vendê-los, e existe um mercado enorme pra isso. Os produtos são inclusive vendidos em outras partes do país. Esses centros ficam cheios todos os dias, e essa “profissão” é passada de pais para filhos. Só lamentei ter visto muitas crianças trabalhando ali, mas posso afirmar que é uma minoria no país.
Um capítulo à parte foi o nosso guia Mehertab, um senhor de 63 anos muito culto, muito educado e que fez o máximo para nos proporcionar excelentes experiências e contar o máximo possível da história do país e da situação atual. Enfim, valeu muito mais do que a pena termos a companhia dele para.
Outra coisa pra registro: o ciclismo é o esporte nacional da Eritreia. Impressionante a quantidade de ciclistas treinando nas ruas e nas estradas, e todos com bicicletas de corrida, muito bem aparelhados. Essa foto abaixo é de uma competição no domingo, na Harnet Ave., interditada para a prova. Não causou nenhum engarrafamento!
Outra coisa que nos chamou à atenção foi o cemitério de tanques, que fica nos arredores de Asmara. São centenas deles, das últimas guerras, a maioria de origem russa, que foi quem apoiou a Etiopia. Não é para ser uma atração turística, mas pelo inusitado, vale à pena visitar.
Asmara já estava vista, era hora de irmos para o interior e o litoral.